A história inicia com a promessa de emprego num restaurante e termina numa fuga de 12 quilômetros a pé, de madrugada, no meio do mato. Duas mulheres e uma adolescente de 16 anos escaparam de uma casa de prostituição, no interior do Estado, onde eram mantidas em regime similar a escravidão, obrigadas a fazer programas sexuais contra a vontade e a limpar a casa, sem direito a contatos externos e sem ganhar nada por isso. Além disso, segundo os autos, as vítimas comiam apenas uma vez por dia e a água que bebiam era suja e contaminada.
Recrutadas por meio de um anúncio na rádio local, e acreditando tratar-se de vaga para garçonete, cozinheira e babá, elas se dirigiram a outro município de ônibus – as passagens foram pagas pelo casal que as contratou. De lá, esse mesmo casal levou as três até uma casa, distante da cidade e sem vizinhança, perto apenas da construção de uma hidrelétrica. Conforme os autos, já na primeira noite os réus obrigaram as vítimas a se prostituírem e, diante da recusa, elas teriam sido ameaçadas de morte.
Com base nos artigos 228 e 229 do Código Penal, o casal foi condenado em primeira instância por atrair as vítimas para prostituição e as explorar sexualmente, e ainda por manter estabelecimento para o referido fim. Cada um recebeu pena de quatro anos e seis meses de reclusão, em regime semiaberto, e pagamento de 22 dias-multa no valor unitário de 1/30 do salário mínimo.
Inconformados, os réus recorreram ao TJ, que manteve a sentença por maioria de votos. O relator da apelação criminal, desembargador Paulo Roberto Sartorato, pontuou: “O togado a quo, além de explicitar as razões que o conduziram à conclusão condenatória, esquadrinhando o contexto fático-probatório extraído dos autos, enfrentou os pleitos defensivos de forma satisfatória, inclusive ressaltando que nos crimes de natureza sexual a palavra da vítima assume fundamental importância à elucidação dos fatos e é capaz de fundamentar a sentença quando em consonância com os demais elementos probatórios.”
Na sequência, o casal ingressou com embargos infringentes, negados por unanimidade pelo 1º Grupo de Direito Criminal. Os embargantes postularam absolvição por insuficiência de provas, discorreram sobre a atipicidade do fato de manter estabelecimento para exploração sexual e, subsidiariamente, almejavam o reconhecimento da teoria da adequação social. Esse princípio preconiza que não se pode reputar criminosa uma conduta tolerada pela sociedade, ainda que se enquadre em uma descrição típica. Mas, de acordo com a decisão, não há fundamento nessa tese porque, por via de regra, somente se admite o funcionamento de determinadas “casas de divertimento adulto” quando não há exploração sexual.
Além disso, como lembrou o desembargador Sartorato, há o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que eventual tolerância de parte da sociedade e de algumas autoridades públicas não implica a atipicidade material da conduta de manter casa de prostituição, delito que, mesmo após as recentes alterações promovidas pela Lei n. 12.015/2009, continuou a ser tipificado no artigo 229 do Código Penal. “De mais a mais, a manutenção de estabelecimento em que ocorra a exploração sexual vai de encontro ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo incabível a conclusão de que é um comportamento considerado correto por toda a sociedade”, concluiu.
Nesta linha, o relator dos embargos, desembargador Luiz Neri Oliveira de Souza, anotou: “Há no país diversos casos em que mulheres, muitas até menores de idade, são atraídas com falsas promessas de trabalho e acabam sendo forçadas a se submeterem à prostituição em ambientes hostis, precários, nos quais acabam até fazendo uso de drogas para fugir da lamentável realidade, predestinadas ao esquecimento e descaso. Por isso, se há provas de exploração sexual, o Poder Judiciário não deve se omitir.”
Por fim, segundo os relatores, a materialidade e autoria delitivas foram devidamente comprovadas por intermédio do boletim de ocorrência, do relatório policial e da prova oral contida nos autos. Os testemunhos das vítimas foram coerentes entre si e corroborados pelos relatos da assistente social, a primeira pessoa que falou com elas depois da fuga.
As mulheres e a adolescente permaneceram na casa durante um mês e fugiram com auxílio de clientes, sensibilizados com a situação. O caso ocorreu na comarca de São Carlos, foi julgado pela 1ª Câmara Criminal do TJ em 26 de abril deste ano e pelo 1º Grupo de Direito Criminal no dia 28 de novembro.
Texto: Elizandra Gomes/TJSC